A última impressão [1]
A
evolução dos computadores, no último quartel do século XX, abriu um novo
território para a produção e receção artísticas, levando ao aparecimento de
novas linguagens gráficas e a um novo tipo de experiência estética, a arte
digital. Mas é só a partir da década de 90 que os softwares de edição raster,
de desenho vetorial e de representação 3D, irão permitir a criação de alta
qualidade, dirigindo o criador para um mundo gráfico autónomo – referimo-nos à
evolução das aplicações para gráficos 2D e 3D em que hoje trabalhamos e que têm
o desempenho conhecido.
Esse
poder, em conjunto com o conceito de computador pessoal, surgido na década 80,
e da invenção da Internet por Timothy John Berners-Lee, no Natal de 1990, permitiram que num
curto período, talvez uma década, mudasse o paradigma da criação artística que
se tinha desenvolvido durante o século passado. As aplicações para gráficos 2 D
imitam as ferramentas do mundo analógico e, grande parte delas, tem as mesmas designações;
no entanto as suas prestações atingem outros níveis, suprem necessidades e exponenciam
conjugações que superam de longe o universo analógico.
Essa
evolução é acompanhada por um hardware
cada vez mais poderoso e pelos novos dispositivos eletrónicos que vão dando autonomia
ao espaço individual do artista, dando-lhe a possibilidade de introduzir dados aptos
a criar novas gramáticas gráficas cada vez mais sofisticadas e interagir com
outros navegadores, em qualquer momento e em qualquer lugar.
As
características estéticas e a especificidade em que assentava a arte foram
alteradas pela tecnologia que, na sua constante evolução, nos tem trazido outras
modos de produção e de fruição do objeto estético, alterando a sua relação para
com o sujeito.
Uma
das alterações verificáveis é o fim da captura do objeto pelo conceito,
que tinha tido origem na segunda década do século XX e em que a obra de arte
estava mais assente na argumentação, conceptualização e trama justificativa que
a envolvia, do que na sua plasticidade e dimensão estética visível que a
prendia à realidade. Poderemos dizer que havia uma sujeição do objeto.
A
arte digital retoma a valorização do objeto artístico e a sua supremacia
oficinal criativa sobre o conceito, trazendo o artista de volta à oficina. A
função do artista é alterada em parte pela força da complexidade dos
conhecimentos técnicos exigidos para criar a obra, embora o computador seja
apenas um meio para a criação do objeto estético, as aplicações que permitem o ato
criativo exigem um certo grau de perícia. O savoir-faire
impõe-se ao savoir-dire.
Esta evolução rápida separou os mundos
criativos, não tanto entre digital e analógico, mas entre modus-conceptualis, baseado na captura e disposição estética
(fotografia, vídeo e instalação) e o modus-faber,
mais ligado ao saber executar, quer seja analógico, quer digital, embora
tendencialmente mais vinculado a este último.
Digamos
que poderemos encontrar ainda grande parte da produção artística numa placa recolectora,
com fundamentação de via conceptual, voltada para o mundo do espetacular, do
insólito, da grande escala explorada pelos média tradicionais e outra parte
voltada para a criação de marca de autor, artesanal, de conceção em rede, de
saída em pequena escala, vinculada aos média digitais.
A
obra de Arte deste novo modelo criativo já não é aquela que o artista afirma ser uma obra de arte mas sim aquela que
ele executa e que poderá ser uma obra de
arte.
O desenho analógico, pela sua natureza, vincula
uma linguagem a cada autor onde a concetualização tem a mesma importância que a
ação física. Na intervenção digital há uma perda – o corpo deixa de ser
determinante e a sua ação é complementada por algoritmos, dando origem a uma
cada vez menor singularidade do registo.
A
predominância do mundo tecnológico, a funcionar em rede, estabilizou a autonomia
do sujeito. O espaço de 12 metros quadrados onde cada artista/artesão digital trabalha, com as ferramentas e os
procedimentos digitais e analógicos de proximidade, contrasta com os barracões
e os espetaculares espaços industriais do paradigma artístico anterior. Ao contrário
do que possa parecer, o espaço exíguo tem todo o equipamento de fabrico de que
o artista necessita, que vai desde a conceção ao espaço de expressão gráfica
analógica e de entrada e de saída digital: modelação, rigging, texturização e impressão. Esta era a fase de saída que nos
faltava para o processo ficar completo – referimo-nos à impressão 3D, que neste
preciso momento está na sua primeira fase de divulgação.
Se
é fácil perceber que os paradigmas da produção e o da receção mudaram, também
teremos de aceitar que a ideia e a visibilidade do artista estão a mudar e o
seu estado e estatuto na sociedade não emerge, mas submerge, e emergirá em
função da dimensão da rede social onde se insere.
Se
é fácil criar a oficina em casa, também é verdade que se multiplicarão o número
de eventos e, consequentemente, o número de artistas/artesãos e que, grande
parte deles existindo, não existirão, pelo menos da forma a que a modernidade
nos habituou a vê-los, quer pela natureza imaterial da sua obra, que é de fácil
perda, quer pela ausência do pedestal que lhe era dado pelos média tradicionais:
quanto maior é a floresta maior o número de árvores que esconde.
Por
outro lado, poderá, cada vez mais, o artista digital ser uma mistura de recetor
e de emissor, ser um semi-artista, um
artista intermitente ou até um artista com identidade expandida,
movimentando-se na web em nichos e plataformas com diferentes identidades.
Desta
fragmentação da identidade poderá resultar a fragmentação da obra e até a
inexistência do artista, como falávamos.
Com
as novas tecnologias é mais difícil reter o espanto e a sacralidade da obra,
como será banal a apropriação, que
fará cada vez menos sentido enquanto conceito central da obra de arte.
Poderei
contar a minha experiência de como este novo paradigma venceu, numa obra que
involuntariamente executei e da qual pretendia apropriar-me, no exercício do
padrão criativo anterior:
Algures
em 1999, tinha recebido um convite para uma exposição de perfil tecnológico.
Preparei-me e segui para o Museu onde se daria o evento. A aguardar à porta,
estava um conjunto de pessoas vestidas de cerimónia que pareciam esperar por
algo. Juntei-me ao grupo e tentei encontrar o colega que me tinha dirigido o
convite, um entusiasta e brilhante informático. A porta abriu-se e verifiquei
de imediato não ser aquilo o que procurava, o acontecimento para o qual me
tinham convidado. Pensei que seria uma visita guiada introdutória do evento. Segui
sempre à frente do grupo, onde o guia se esforçava por explicar as principais
peças do Museu e que eu confirmava com gestos de entendedor, sempre que sentia
que quereriam a minha anuência. Segui na estranha comitiva que avançava entre flashes e registos televisivos, perfeitamente
integrado (pensava) fluindo nos gestos e nas cedências de passagem e fazendo
comentários ocasionais. Fomos passando salas sempre na expectativa de surgir ao
fundo a dita exposição anunciada. Quando nos aproximávamos do fim, o guia abeirou-se
(pensei que seria para me indicar que finalmente viria o evento) e perguntou-me:
o senhor pertence à associação de industriais hoteleiros? Vendo a minha
estranheza afirmou: Sim, esta é uma visita para essa associação! Percebi então
que era uma visita diferente e que ali não haveria outo evento para além daquele.
Depois de uma hora passada, seguindo com detalhe as explicações de todas as
peças do percurso, senti então uma espécie de vertigem, como prestes a cair por
uma fenda infinita. Finalmente recomposto, dirigi-me para outro espaço do Museu,
dei com uma plateia repleta, encantada nas efabulações de um brilhante orador;
pensei então que seria ali o prelúdio da inauguração que viria de seguida. Como
não havia cartazes, reforcei a convicção de que, por ser tudo tecnológico, não
haveria outra informação para além dos e-mails.
Sentei-me esperando que a conferência acabasse e saíssemos todos por uma das
portas duplas da sala que se abriria para a exposição. Fui seguindo a história,
cada vez mais familiar. Percebi que falava sobre uma vivência muito idêntica àquela
que eu acabara de experimentar, a minha outra identidade, a de falso industrial
de hotelaria, de onde tinha acabado de sair. Tudo me parecia estranho. Fixei a
atenção e cada vez me parecia mais real, ouvir falar da inexistência daquele
personagem; saí à pressa, como de um mundo absurdo. Atrás de mim ainda ouvi as
palmas e os agradecimentos ao escritor Enrique Vila-Matas. Já em casa e refeito
do desconcerto, pensei que poderia gravar a peça, se ela aparecesse no
telejornal, para a apresentar como obra de Arte.
Preparei
o vídeo, liguei a televisão no telejornal local, esperei pela reportagem para a
gravar, apropriar e considerá-la como Arte, fazendo valer a minha performance
involuntária. A reportagem apareceu, mostraram alguns dos passos do percurso,
reconheci o guia e boa parte dos convidados, mas a minha imagem não aparecia. Era
incrível, parecia-me um sonho! Tinha a certeza de ali ter estado mas, era um
facto, não estava naquele documento: sentia-me o personagem de que falava
Vila-Matas, um artista inexistente, forçado a mudar de padrão criativo. Ali
estava o poder da tecnologia – o apagamento devia-se a uma excelente edição de
vídeo.
Refém
do anterior paradigma criativo, ainda pensei a oportunidade de editar aquele
vídeo com recurso à técnica do efeito visual Chroma key. Mas que
importância teria essa montagem banal?
Abri o pequeno livro La Comunità
che viene [2] e tive a impressão de ler a frase “o
que aparece é bom, o que é bom aparece”. Pousei o livro e olhei para o monitor
que agitava uma frase: “ aplicação de atualização, não desligue o computador…”
Jorge
Castanho, Lisboa, Abril de 2013.
[1] Comunicação
lida nas conferências - As Idades do Desenho, em 12 abril de 2013, no Grande Auditório da
FBAUL
[2] Giorgio
Agamben © 1990 Giulio Einaudi editore s. p. a.,
Torino.